Em menos de uma semana, o Governo de Portugal apresentou o
Documento de Estratégia Orçamental (DEO) para os anos 2014-2018 e a solução
adoptada para a saída o período que se segue ao programa de resgate financeiro.
Foram duas ocasiões em que os nossos governantes ousaram
ludibriar, novamente, os portugueses.
A primeira ocasião foi a apresentação do DEO para os próximos
quatro anos. Acreditar que este documento tenha sido estudado, pensado,
preparado, elaborado e aprovado sem já ter sido definida a solução para a saída
do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro é pura ingenuidade. E não
chamar aumento de impostos ao aumento da taxa de IVA e da TSU é de um
descaramento atroz.
A segunda foi ao anunciar que, com o fim do programa, o país
reganharia as suas soberania e autonomia financeira, que seria dono do seu
destino.
Relativamente ao DEO, não sou o cidadão mais indicado para o
questionar. As minhas noções de Economia e do estado das finanças públicas são
pouco mais que nulas. Mas, ao lê-lo, o meu receio relativamente o futuro
agudizou-se. Ver como pressupostos para o documento os valores estimados da
evolução do custo do barril de petróleo (no mercado de Brent) e do câmbio entre
o euro e dólar que são apresentados fazem-me duvidar que a economia portuguesa
atingirá os objectivos previstos. Como é possível pensar que o preço do barril
de petróleo irá progressivamente baixar, até 2018, até cerca de 88 dólares?
Ainda por cima, tendo em conta todos os conflitos actualmente existentes,
recentes e mais antigos, que tão cedo não terão um fim?
Este é também um documento capcioso. Dou como exemplo o
primeiro parágrafo da página 12. Cito: “Outro
risco externo, com implicações internas negativas, prende-se com a
possibilidade de aumentos adicionais do preço do petróleo, em resultado da
continuação das tensões geopolíticas no Médio Oriente e Norte de África e, em
alguns países da América Latina (como a Venezuela). Acresce que o recente conflito
entre a Rússia e a Ucrânia tem pressionado o preço da energia e o seu
fornecimento aos países do centro da Europa, designadamente do gás natural, criando
maior incerteza na evolução dos preços destes produtos. Deve-se referir que
este facto pode, contudo, constituir um risco positivo para a economia
portuguesa que, fazendo uso das suas infraestruturas, poderá suprir, em parte,
as necessidades energéticas dos países do centro e norte da Europa”. Ora,
por um lado, considera uma redução substancial do preço do petróleo (de que
continuamos a ser tão dependentes), por outro, é digno de ser considerado e
mencionado como risco (que outros, omissos, haverá??) o inverso. Até me parece
sensato, sim senhor, mas daí a considerar que essa desvantagem pode ser
compensada por virmos a ser um fornecedor deste e doutros bens à Europa, desde
a Espanha até à Noruega, é de uma enorme demagogia. Temos capacidade para levar
petróleo e os seus derivados, por via férrea, de Sines até ao Centro da Europa?
Temos gasodutos que nos liguem à Suécia? E que infra-estruturas já concebemos
para levar o gás natural existente em tão grande quantidade na zona de Alcobaça
a outros destinos? Nada, não existe nada senão projectos no interior de alguma
gaveta.
Quanto à evolução da relação entre o euro e o dólar,
estima-se que esta será, em 2018, de 1 para 1,45. Ora, se tal acontecer, não me
parecem críveis as estimativas para as importações e exportações portuguesas e
europeias. Na passada semana, questionei, numa conferência sobre competitividade
e emprego, uma eurodeputada, economista e professora da Faculdade de Economia
do Porto, se um euro demasiado forte face ao dólar não era mais um factor de
divergência entre Portugal e a Europa. Fiquei satisfeito por ver a minha
opinião ser partilhada pela senhora. É que a Alemanha importa e exporta
maioritariamente para a Europa, transaccionando em euros. Portugal tem relações
comerciais em maior volume com nações de África e da América latina, que têm as
suas moedas indexadas ao dólar e/ou sem relação cambial directa com o Euro.
Ora, com um euro mais forte, esses países terão que pagar mais pelos produtos e
bens portugueses, o que significa que é expectável que as nossas exportações
invertam o sentido com que têm evoluído.
Deixa-me também inquieto o pacote de medidas anunciado,
nomeadamente no que diz respeito ao IVA e à TSU. Saúdo a reposição de rendimento
aos funcionários públicos e aos pensionistas, mas o aumento do IVA irá afectar
todos os portugueses, sem excepção. E, se pode ser verdade que alguns preços
não serão alterados - os restaurantes, principalmente, estou certo que manterão
os preços ao consumidor, mas o aumento do IVA será pago de outra forma, seja em
mais desemprego, na falta de conforto no espaço ou na qualidade dos produtos –,
a maior parte fará automaticamente a operação de multiplicação: as facturas da
electricidade, do gás, da mercearia serão afectadas.
A juntar a esta injustiça, também a falta de equidade é
reiterada. Uma conta rápida: com as medidas anunciadas na conferência de
imprensa de apresentação do DEO, uma pensão de 1 000 € brutos passa a descontar
(duradouramente em vez de transitoriamente) 20 € em vez de 35 € (menos 15 €);
uma pensão de 3 500 Euros passa a descontar 122,50 € em vez de 350 € (menos
222,50 €). Ora, a poupança do primeiro não lhe permitirá, certamente,
pagar a factura mensal de electricidade da sua habitação; já o segundo
dificilmente terá uma factura de valor superior a essa poupança. Onde está
a equidade, onde está a distribuição equitativa do esforço de consolidação das
finanças públicas?
Este DEO não consegue disfarçar o odor a injustiça,
insensatez e irresponsabilidade que tem exalado deste Governo. Mas, pelo menos,
serviu para novamente nos dar uma nova edição do Dicionário da Língua
Portuguesa. Depois da alteração de significado de “irrevogável”, temos agora
novos significados para “transitório” e “abolido”.
Relativamente à saída do programa de resgate que agora se
conclui, ofende-me vê-la ser considerada como limpa. Por várias razões. Em primeiro
lugar, não é verdade que saída limpa seja sinónimo de sermos financeiramente
donos do nosso destino: 1) continuaremos a ter missões de fiscalização
regulares (em menor número, é certo, mas regulares) durante, pelo menos, quinze
ou vinte anos; 2) enquanto os outros Estados-membros, de acordo com o PEC,
poderão apresentar um défice de 3% relativamente ao seu PIB anual, Portugal
estará limitado, pelo memorando de entendimento, a um défice de 2,5%. Ou seja,
é solicitado a um português que percorra a mesma distância em menos tempo pelas
colinas de Lisboa que um alemão na plana urbe de Berlim.
Em segundo lugar, a saída limpa não foi adoptada por vontade
do nosso Governo; foi imposta por outros Estados-membro. Ver o nosso Governo
congratular-se com essa decisão é a mesma coisa que uma equipa congratular-se
com uma vitória por falta de comparência do adversário. A verdade é que o
Governo português pretendia a rede de um programa cautelar, seja ele o que for,
mas as garantias, os colaterais exigidos deveriam ser de uma dimensão difícil
de imaginarmos. E se as garantias exigidas são elevadas, é sinal que a
credibilidade para cumprir compromissos no futuro é reduzida. Assim sendo, o
que será que nos é ocultado?
Em terceiro lugar, afirmar que o PAEF foi cumprido na
íntegra é, novamente, iludir os portugueses. O programa viu as suas metas
alteradas, sendo estas flexibilizadas. Foram-no muito justamente, quanto a mim,
mas foram-no. E as medidas nele inscritas? Estas nunca foram claras, havendo
diversas discussões entre os partidos que o assinaram sobre se determinada
medida estava prevista ou não.
Não é fácil lavar Portugal. É verdade que os portugueses o
merecem, mas não é fácil. Não sendo possível, de um dia para o outro,
empreender tal tarefa, é preciso encontrar bons técnicos de limpeza e começar por
afugentar as moscas. Depois, eu sugiro àqueles que entrem munidos de um melhor
instrumento que elimine primeiro o fedor exalante.
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